Meditações

Estava na prisão e me visitaram…

Por Maurício Zágari

Deus não habita apenas em templos. Deus habita em presídios. E hospitais. E onde há alguém sofrendo, angustiado, prese em sua própria maldade.

Não posso falar onde nem dar muitas informações, a pedido da direção do presídio. Mas não gostaria de deixar de compartilhar com você algo sobre a experiência que tive quando, pela primeira vez, entrei em uma penitenciária, a fim de levar uma palavra para os encarcerados e compartilhar um pouco de amor. Foi uma experiência inesquecível, que me levou a profundas reflexões sobre muitas coisas. Vamos a elas, então, na esperança de que somem à sua vida. 

O sol estava forte e eu caminhava em direção ao presídio. Não sei se era o calor ou minha tensão diante do ineditismo da situação, mas minha camisa estava encharcada. Assim que cheguei diante dos portões, olhei para o lado e vi pichado em um muro: “Deus é fiel”, talvez para lembrar a quem chega ali de que não serão grades ou paredes que o separarão da fidelidade do Senhor. 

Bati na portinha de acesso e fui recebido em um pequeno recinto, onde agentes penitenciários me despiram de meus pertences e me revistaram. Na parede, o texto de um salmo bíblico, ao lado de um fuzil. Ou metralhadora, não entendo nada de armas. Liberado, fui recebido por um profissional do presídio, que me conduziu por um pátio até um grande pavilhão, em cuja fachada se lia em letras garrafais: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Sim, a cada passo que eu dava naquele lugar destinado a abrigar os que em algum momento da vida deram as costas a Deus, eu via sinais marcantes da presença de Deus. Salmo 139 na prática. 

Quando recebi o convite para levar a palavra aos encarcerados, idealizei como seria aquele momento. Em minha mente, eu entraria por uma área restrita e seria conduzido até algum auditório ou coisa assim. Em dado momento, os presos entrariam, eu falaria a eles e depois eles sairiam. Ao final, eu caminharia para a saída, por corredores exclusivos e seguros. Um pensamento bastante arrogante, admito, de alguém acostumado a pregar e palestrar em igrejas e centros de convenções. Que tolo, eu. A realidade foi bem diferente. 

Ao chegar ao pavilhão, entrei por uma portinha onde havia mais agentes penitenciários, atravessei mais um detector de metais e, quando me dei conta, estava em um recinto fechado,  onde centenas de encarcerados perambulavam, conversavam, cortavam o cabelo. Sim, eu estava no meio deles. Cercado por todos os lados por bandidos condenados. Um susto. 

A certa distância, eu via corredores cheios de celas escuras e bagunçadas, com mãos estendidas para fora das grades. Não consigo imaginar como alguém pode viver por anos em um ambiente tão desumano. Talvez porque enxerguemos seres humanos que cometeram crimes como seres desumanos. Talvez porque nós sejamos desumanos. Não sei. Também não tive tempo para pensar muito nisso, pois logo precisei prosseguir, caminhando entre aquela multidão de estupradores, sequestradores, ladrões e assassinos, rumo ao local onde lhes falaria.  

Contaminado por décadas de filmes de Hollywood a respeito de penitenciárias, eu não sabia se olhava nos olhos deles como sinal de humanidade ou se caminhava de olhos fixos no chão, para não parecer desafiador. Não sabia se podia pôr a mão no ombro daquelas pessoas em sinal de proximidade ou se isso seria visto como uma ofensa. Ali me senti como quem não sabia absolutamente nada. Por isso, me concentrei apenas no que me havia levado ali: compaixão por vidas humanas, almas perdidas que, por conta de seus  pecados, pagavam seus crimes com falta de liberdade. 

Foi quando me lembrei das palavras de Cristo: “Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, ele se sentará em seu trono glorioso. Todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará as pessoas como um pastor separa as ovelhas dos bodes. Colocará as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham, vocês que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o reino que ele lhes preparou desde a criação do mundo. Pois tive fome e vocês me deram de comer. Tive sede e me deram de beber. Era estrangeiro e me convidaram para a sua casa. Estava nu e me vestiram. Estava doente e cuidaram de mim. Estava na prisão e me visitaram’. Então os justos responderão: ‘Senhor, quando foi que o vimos faminto e lhe demos de comer? Ou sedento e lhe demos de beber? Ou como estrangeiro e o convidamos para a nossa casa? Ou nu e o vestimos? Quando foi que o vimos doente ou na prisão e o visitamos?’. E o Rei dirá: ‘Eu lhes digo a verdade: quando fizeram isso ao menor destes meus irmãos, foi a mim que o fizeram’” (Mt 25.31-40).  

Perceba uma coisa. É interessante que Jesus não põe em discussão nessa passagem a razão de os “menores de seus irmãos” estarem encarcerados. Ele não leva em conta nesse momento os crimes e as abominações que tais pessoas praticaram. O Senhor não nos orienta a só visitar os presos que cumprem penas leves ou os que não praticaram crimes hediondos. Não. Tudo o que ele diz é que, ao visitar um preso, estamos visitando o próprio Cristo. Incondicionalmente. E foi ao pensar nisso, cercado por aquelas centenas de criminosos e bandidos, que fui capaz de erguer os olhos e enxergar ao meu redor Jesus. Não em palavras escritas em paredes, mas em vidas desencaminharas, perdidas, sofridas e aprisionadas não por grades, mas por pecados. E senti compaixão. Muita compaixão. 

Tenho visto muito ódio nos cidadãos do nosso país quando o assunto são criminosos. Sim, são bandidos. Sim, fizeram coisas horríveis. Sim, se tivessem feito algo com alguém da minha família eu ficaria arrasado, possivelmente teria de lutar para não dar vazão à minha ira. Mas, naquele momento, não os vi como a escória da humanidade, como safados e escroques: certamente, por intervenção do Espírito Santo, eu olhei para aqueles homens e fui abençoado com a possibilidade de enxergar almas perdidas, adoentadas, cegas, daquelas que “não sabem o que fazem”.  E compreendi muito do olhar de Cristo sobre nossas misérias. E senti dó, um dó muito grande. 

Fui até o local onde faria minha preleção. Cerca de 150 homens, sendo dois travestis, ficaram me olhando passar espremido no meio deles, até chegar à frente. Falei por cerca de vinte minutos e, essencialmente, perguntei que tipo de pessoa eles seriam quando cumprissem a pena e ganhassem a liberdade: se voltariam a praticar crimes ou se viveriam para deixar um legado digno nesta terra. A maioria me ouviu com atenção. No fundo do salão, uns não davam a mínima para o que eu dizia e não faziam nenhuma questão de disfarçar: seu desinteresse era patente. Mas posso dizer que enxerguei nos olhos de muitos arrependimento e o desejo sincero de redenção. Talvez não ainda uma redenção espiritual, mas, com certeza, redenção social. 

Canalhas nos despertam fome de justiça. Queremos a morte deles. Prisão perpétua, no mínimo. Vingança. Que sofram! Porém, Jesus olha para mim ou para um estuprador, um assassino, um traficante ou o horror que seja e enxerga não casos perdidos, mas potenciais e preciosas possibilidades de futuro. Ele veio para isto, justamente: fazer tudo novo. Desfazer as obras do Maligno. Ele veio para os doentes e não para os sãos. Ele veio para refazer, resgatar, restaurar, reconstruir, reedificar. Cristo está preocupado com o que está inacabado. Ele olha para corações em trevas e deseja lhes estender luz. E é o que devemos desejar também. 

Terminei a preleção, me despedi e saí do recinto. No caminho para a porta de saída, parei para conversar com um jovem de aparência igual a muitos que costumo encontrar pelos corredores de shoppings e áreas de lazer, não fosse a camisa do sistema prisional. Perguntei por que estava ali. “Sequestro”, ele respondeu. “E a quanto tempo você está condenado?”. “A vinte e três anos”, ele me disse. Eu o abracei. E tive de deixá-lo ali, aos cuidados do Cristo a quem ele disse ter encontrado na prisão. 

Passei pela mesma portaria de antes, peguei meus pertences, agradeci aos agentes penitenciários e saí pela porta. Ganhei a rua e comecei a caminhar rumo a qualquer lugar longe daquela escola de realidade. Esqueça os reality shows: ali está a realidade da vida. 

Meu coração estava apertado por aquelas ovelhas sem pastor, pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus que se deixaram enredar em ciladas malignas e trilhar um caminho de trevas. Pela graça, ali dentro muitos encontraram a luz. Outros nunca encontrarão. Mas não cabe a mim dizer quem seguirá pelo caminho da vida eterna e quem não. Meu papel eu tentei cumprir da melhor maneira possível, ao visitar aquelas dezenas de cristos, presos em algum lugar do Rio de Janeiro, à espera de algo que não sei se, nem quando, encontrarão. Tentei vê-los com graça, amor e misericórdia. Tentei dar-lhes o meu melhor. É pouco, eu sei. Mas é o que o Senhor me confiou a fazer. 

A Bíblia diz que Deus não habita em templos. Naquele dia entendi como nunca o que isso significa. Deus habita em presídios. E hospitais. E onde há alguém sofrendo, angustiado, perdido, doído, desencaminhado, confuso, aprisionado pela própria maldade. Deus habita nas cracolândias, nos prostíbulos, nas bocas de fumo, nos lugares mais desgraçados do mundo. O problema é que a maioria não o vê, não o enxerga, não o percebe nesses lugares. Cabe a mim e a você, meu irmão, minha irmã, levar a palavra que os fará ter a percepção de que, sim, o Nazareno está ali, para todo aquele que receber seu toque e seu abraço. Até onde você está disposto a ir para mostrar essa verdade ao mundo? Só até a biblioteca? Só até o púlpito da Igreja? Só até o conforto do seu ar condicionado? 

“Estava na prisão e me visitaram…”. Essa afirmação de Cristo deveria mudar tudo em nós, em nossa forma de pensar, agir, pregar, orar, acordar, dormir, sonhar. Essa experiência abalou as minhas estruturas. E peço a Deus que ele dê a você experiências que abalem a sua. Se isso ocorrer com muitos de nós, cristãos, acredito que teremos uma Igreja muito mais pautada por graça, amor, misericórdia, compaixão. Em outras palavras, uma Igreja segundo o coração de Deus. 

Paz a todos vocês que estão em Cristo,
Maurício Zágari

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