Meditações

Os últimos momentos de vida do meu herói

Por Maurício Zágari

A dor da perda de um ente-querido, mas a paz de saber que ele recebeu a salvação de Cristo em sua vida antes de partir.

Quando presenciamos a chegada da morte, parece que nossos sentidos se aguçam. Prestamos atenção a detalhes a que antes não prestávamos, falamos o que por bastante tempo esteve silenciado, derramamos lágrimas que há muito estavam represadas. Meu herói partiu. Meu pai, Wilson, a doze dias de completar 85 anos, deu um passo além dos portões da vida. Não o chamo de herói por uma suposta perfeição: verdadeiros heróis nunca são perfeitos, até porque o que define o heroísmo não é a ausência de falhas, mas os atos praticados em favor do próximo por pessoas cheias de falhas. E tudo o que papai fez por mim ao longo de meus 45 anos de vida são o suficiente para que ele mereça o título. Pecador, falho, cheio de defeitos, mas também cheio de lindas qualidades: assim foi meu herói. O herói que amarei para sempre.

Haveria muito que eu poderia contar sobre a vida de papai, mas neste texto desejo me concentrar em seus últimos momentos sobre a terra, numa reflexão que, penso eu, poderá ser proveitosa para você. Meu pai já não vinha bem havia algum tempo. Seu coração estava fraco; suas pernas, pesadas; sua mente, embotada. Mas, por mais que a artrose provocasse dores a cada passo, ele jamais abandonou seu bom humor: para meu pai, tudo sempre estava muito bem. Nunca foi um “velhinho reclamão”: era aquele tipo de cara que conquista simpatias por onde passa e encanta todos.

No dia 17 de janeiro, ele deu entrada no atendimento de emergência, sem conseguir andar e com o estômago anormalmente dilatado. O diagnóstico: volvo intestinal, o popular “nó nas tripas”, uma torção do intestino que o obstrui e só se resolve com cirurgia. É grave em pacientes de qualquer idade. Mais  ainda em um idoso cardiopata e que estava se preparando para receber um marca-passo. Além disso, foi exatamente o que tirou a vida de seu pai, sete décadas antes. 

Assim que minha mãe me avisou do ocorrido, voei para a emergência. O encontrei com muito sono, aguardando liberação do plano de saúde para ser transferido a um hospital, a fim de ser operado. Estado grave. Cirurgia de alto risco. Mas, apesar da pesada sonolência, sempre que falávamos algo com ele, papai respondia com muita coerência. Sim, ele estava com sono, mas lúcido. 

– Oi, paizão – saudei-o, como de hábito. 

Ele me reconheceu e me recebeu com um sorriso e um beijo. Perguntei se estava com dor, uma pergunta que repeti muitas vezes até seus instantes finais. Ele sempre negou. Papai partiu sem sofrimento. Durante aquela noite, eu e minha mãe trocamos algumas palavras com ele, que fez muitas declarações de amor a ela, sua companheira por mais de 48 anos. 

– Benzinho, você me ama? – perguntou ela. 

– Muito – ele respondeu. 

– Está arrependido de ter casado comigo?

– Não.

– Por quê?

– Porque eu sou muito feliz. 

Algumas vezes, ao longo das horas seguintes, ouvi diálogos semelhantes a esse entre eles. Eu mesmo lhe disse quanto o amo e como sou grato por tudo o que fez por mim. Em determinado momento, cheguei perto de seu ouvido e agradeci. 

– Pai, muito obrigado, pois muito do que sou hoje eu devo a você. 

Sua expressão fisionômica mudou na hora. Eu conhecia aquela expressão, a mesma que ele fez no dia de meu casamento, 17 anos antes, quando expressei a ele e a minha mãe gratidão por tudo o que haviam feito por mim ao longo da vida. Era uma expressão de emoção e choro. Naquele instante, vi que ele se emocionou: a gratidão de um filho faz esse tipo de coisa. Lembre-se disso. 

De madrugada, ele foi transferido para um hospital e, no dia seguinte, 18 de janeiro, eu e minha mãe fomos visitá-lo no CTI. Novamente, pudemos trocar palavras com ele durante o horário de visitas. Falamos tudo o que tínhamos para falar. Terminado o horário de visitas, saímos, minha mãe para a casa dela e eu para minha. Mal cheguei, tocou o telefone. Era o cirurgião, me pedindo para retornar às pressas para o hospital, pois o estado de meu pai era muito grave e ele queria operá-lo dali a, no máximo, uma hora. Só tive tempo de voar de volta. Falei com minha mãe ao telefone e pedi que não fosse ao hospital, mas ficasse em casa e descansasse, pois eu sabia que ele poderia não sair vivo da mesa de cirurgia. Cheguei ao hospital, conversei com o cirurgião e com o anestesista e, como imaginei, ouvi deles que era um procedimento de altíssimo risco. Por isso, pedi para ter acesso a ele no CTI, mesmo fora do horário permitido. Fui autorizado. 

Fiquei cerca de uma hora sozinho com meu pai. Ele estava naquele estado de sonolência, mas sempre que eu lhe dizia alguma coisa, ele respondia, de forma um pouco sussurrada, mas coerente. Repeti a ele que o amava, mais uma vez agradeci por tudo o que havia feito por mim. Decidi telefonar para meu irmão, que é missionário na Espanha. Pus a ligação no viva voz e meu pai conversou com ele. Depois, com minha cunhada. Por fim, com meus sobrinhos. Meu pai reconheceu todos. Falou com cada um. Perguntou quando minha sobrinha viria ao Brasil. Foi a última vez que conversou com eles. Desliguei o telefone e fiquei algum tempo em silêncio, orando, segurando sua mão fofa e acariciando seu braço. Dali a pouco, tocou o telefone. Era minha mãe, querendo saber notícias. Perguntei se ela desejava falar com meu pai, e ela disse que sim. Pus a ligação no viva voz.

– Pai, é a mamãe. Ela quer falar com você. 

Papai manteve-se de olhos fechados. Ela começou a falar, mais uma vez declarando seu amor por ele, que respondeu, demonstrando o mesmo sentimento. Em certo momento, minha mãe começou a falar do dia em que eles se conheceram, na sala de professores da escola em que ambos lecionavam. 

– Benzinho, lembra daquela moça de cabelos compridos que você viu na sala dos professores?

– Lembro. 

– Ela era bonita?

– Era. 

– E você se casou com ela? 

– Não. 

Um silêncio constrangido pairou no ar por alguns momentos. Eu e minha mãe na hora pensamos que ele já não estava mais raciocinando direito. Foi quando papai deu um sorrisinho maroto, o mesmo que sempre dava quando fazia uma piada com alguém. Percebi que ele estava uma vez mais pondo em prática seu bom humor, gozando da cara de minha mãe. Eu sorri e disse ao telefone:

– Mãe, ele está rindo. 

Todos rimos. Conversaram por mais algum tempo, até que desliguei o telefone. Estava na hora da cirurgia e vi que precisava me despedir. Seus olhos estavam fechados. Achei que estivesse dormindo. Dei um beijo em seu rosto e disse algumas palavras de amor. Caminhei até a porta e, de longe, certo de que ele não estava me vendo, acenei com a mão, dando tchau mexendo os dedos para cima e para baixo, que era a sua forma de acenar. Para minha surpresa, ele levantou a mão e acenou de volta. Percebi que, sim, ele estava me vendo. Não resisti e caminhei a passos acelerados até seu leito, segurei sua mão e a enchi de beijos. Ele segurou minha mão forte, como se não quisesse que eu fosse embora. Por isso, fiquei mais um longo tempo ali com ele, beijando sua mão e seu rosto, acariciando seus cabelos “cor de luar”, como minha mãe costumava dizer. Até que, chegado o momento da cirurgia, tive de sair. E lhe disse as minhas últimas palavras com ele consciente. 

– Eu te amo, paizão. Muito. 

Permaneci na recepção do hospital por três horas, tempo que durou a cirurgia. À meia-noite e meia do dia 19, a equipe médica chegou e relatou que havia removido praticamente todo o seu intestino, que estava necrosando. Agora tudo poderia acontecer. Ele permaneceria em coma induzido e com respiração artificial e seu estado era muito grave. Voltei para casa, dormi e, mais tarde, fui visitá-lo. Sua aparência já não era a mesma; agora ele não estava mais sonolento, estava sedado. Cantei um hino, segurando sua mão: “Espírito, enche a minha vida; enche-me do teu poder, pois de ti eu quero ser…”. No dia seguinte, fui com minha mãe e minha esposa visitá-lo. Soube que o cardiologista dele havia estado ali mais cedo e, por isso, lhe telefonamos. Ele foi muito direto:

– O estado dele é gravíssimo. Preciso ser franco e deixá-los cientes de que ele não tem chance de sair do hospital com vida. 

Relatei isso a minha mãe. Choramos e ficamos ao lado de meu pai, acariciando seus cabelos e sua mão e dizendo-lhe palavras de amor, embora possivelmente ele não tenha conseguido ouvir nada em seu coma induzido. Se ele não ouviu, foi importante para nós falar. De pé ao seu lado, abracei minha mãe e minha esposa e fiz uma oração. Minha mãe também orou. Cantei “Porque ele vive posso crer no amanhã. Porque ele vive temor não há…”. E, com o rosto molhado, li em voz alta Apocalipse 21.1-7:

“Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras. Disse-me ainda: Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. Eu, a quem tem sede, darei de graça da fonte da água da vida. O vencedor herdará estas coisas, e eu lhe serei Deus, e ele me será filho”.

No sábado, dia 21, fui novamente visitá-lo. Cantei “Rude cruz”, acariciando seus cabelos. À noite, meu irmão chegou da Espanha e no dia seguinte fomos visitá-lo, pela última vez. No dia 22 de janeiro, às 16h05, duas horas depois da visita, meu pai despediu-se de seu corpo e deu o glorioso passo, adentrando os portões da eternidade. Creio que ele está com o Senhor, em razão de algo que ainda não relatei. Nessas últimas conversas com papai, tivemos uma breve mas importantíssima troca de palavras. 

– Pai, você vai ter de passar por uma cirurgia, mas fique tranquilo, pois Jesus vai cuidar de você. 

– Amém – sussurrou ele. Ao que indaguei:

– Pai, você ama Jesus?

– Claro – foi sua resposta, dada sem hesitação. 

– E você crê que ele é seu Senhor e seu Salvador?

– Claro. 

Dei um beijo em sua testa e segurei sua mão, em silêncio, ainda sob o eco daquelas palavras, que confirmavam seu batismo, ocorrido poucos anos antes. A ratificação de sua profissão de fé me manteve em paz até sua partida. Tenho convicção de que o Criador deu de graça da fonte da água da vida para que meu pai bebesse. O Senhor lhe foi Deus, e Wilson lhe foi filho. Por isso, meu coração repousa em paz, pela esperança firme de que, com seu último suspiro, meu pai foi tomado pela mão dos anjos e conduzido à presença daquele que enxugará de nossos olhos toda lágrima. E ali papai permanece, em paz, até o glorioso dia do reencontro. 

Você pode se perguntar por que decidi fazer este longo relato pessoal aqui, tornando públicos esses momentos tão particulares. Tomei a decisão de compartilhar com você como foram os últimos momentos de vida do meu herói para dizer-lhe, depois de ter passado pela íntima experiência da morte de meu pai, algo que você já deve saber, mas que agora posso dizer com total propriedade e que faz toda diferença: meu irmão, minha irmã, a vida é, como a Bíblia sabiamente afirma, um sopro, um vento; é como uma sombra que passa.

Não perca tempo com o que é inútil, com prazeres bobos, brigas, discussões e separações que levam do nada ao lugar nenhum. Priorize o que é prioritário. Deixe de lado o seu orgulho. Enquanto é tempo, perdoe e peça perdão; ame e faça por onde ser amado; distribua sem restrições carinho, gentileza, sorrisos, afagos, calor humano, paz. Doe-se ao próximo. Dê de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede. Abrace. Diga a quem você ama tudo o que precisa ser dito, sem esperar pelo amanhã – e faça isso todos os dias. Tudo, todos os dias! Volto a dizer: tudo, todos os dias!

Meu pai está na glória e passarei algum tempo sem vê-lo, carregando a saudade até o reencontro. Mas o fardo será leve, por saber que, enquanto ainda havia tempo, eu lhe disse tudo o que precisava dizer, dei-lhe todo amor e reconhecimento que precisava dar, pedi perdão e expus minha gratidão. Fiquei em paz com ele emocionalmente e espiritualmente. E aqui escrevo… em paz. Até breve, meu herói. Quando, enfim, viveremos juntos, sem mais lágrima nem dor, aqueles últimos e eternos momentos que nunca terão fim. 

Preciso perguntar a você: como estão seus relacionamentos? Você está em paz com todos? Não? Então não adie, meu irmão, minha irmã, o que precisa ser dito a quem você ama: diga hoje! E não adie o que precisa ser feito caso você odeie alguém: reconcilie-se e perdoe! Não mantenha rancores, esperando que o acaso os resolva ou largando para lá: tome a iniciativa. Faça acontecer. Não deixe nada pendente em seus relacionamentos. Acredite, e falo isto com conhecimento de causa: na hora em que a morte chega, ter a paz de não deixar pendências com quem partiu faz toda a diferença. No leito de morte, o que realmente importa é o que realmente importa, e não as muitas questões inúteis a que nos devotamos em grande parte da vida. Relacionamentos. Afeto. Bondade. O Deus que é amor. O amor pelo próximo. E, enfim… a paz. 

Que essa paz esteja com todos vocês que estão em Cristo,
Maurício Zágari 

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